Vencedor Concurso de Escrita “Lamúria dum Romântico”

“Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura.”
– Miguel Torga

O sem abrigo de olhos cegos e frenéticos, que nos veem além dos olhares vivos,  erguendo-se da valeta mais um dia para suplicar os nossos trocos. Linchamentos de  muçulmanos em Israel e bombardeamentos em Gaza. Pedaços de criança explodida no  Afeganistão a serem empilhados para a mortalha se erguer num vulto vagamente sugestivo  dum cadáver com algum resquício de dignidade. Refugiados a morrerem no mar para  chegarem a um sítio onde serão desprezados por terem nascido no pedaço de terra errado.  Pretos em Palma com vidas menos valiosas que os cães dos brancos. Uigures na China  reeducados a serem diariamente violados por grupos de guardas ingluviosos. Pedófilos a  levar cachopos pelos braços como se fossem malas para lhes estuprarem as entranhas em  pasta. Infortunados a morrerem de hipotermia, de fome, de Covid como baratas numa  desinfestação. As deliciosas amoras de Odemira temperadas com suor de escravos. Enquanto  eu me sento à luz do cigarro, de copo de porto na mão, a lavrar o terreno desta folha branca  numa masturbação espiritual.

Fascistas, comunistas, extremistas, capitalistas, o dinheiro, o trabalho, a fome, e a dor.  O cansaço, a solidão com e sem pessoas à volta, o sepulcro frio, morada final. A efemeridade  do amor. O fulgor dos olhos que se apaga. O tédio, que num bocejo engoliria o mundo, a  mais subestimada das violentas torturas do arsenal da vida. E todos os golpes diários do  destino aparentemente inócuos. Os semáforos vermelhos quando estamos atrasados, a fila que  apanhamos no supermercado, o pneu que fura, o computador que pifa, a esferográfica sem  tinta, o silêncio constrangido, a negativa no exame. As mentiras românticas com que nos  embriagaram em novos para as vermos em estilhaços dilacerantes que inolvidáveis ecoam  muito depois da realidade nos desflorar, “Querer é poder”, “Amor eterno” e “Alma gémea”,  “O dinheiro não importa”, “E viveram felizes para sempre”. O modo patético como  cambaleamos tal sonâmbulos, desesperados por empurrar o êmbolo da seringa cheia de doce água do Letes com mais um deslize de dedo pelo ecrã, mais um vídeo, filme, copo, cigarro,  orgasmo, riso, palavra. Benditos os insanos, únicos sãos deste mundo!

Perfura-me o fundo do cérebro como um berbequim em suaves rotações, este remorso  da inação perante atrocidades que sei que ocorrem, esta compaixão que se estende em  lágrimas inúteis, esta sensação de impossança perante um mundo demasiado complexo para o  ser simples que sou.

Sou um paralítico a ser escarnado até ao tutano. Não tenho força para gritar por isso  escrevo.

Miserável existência! É suficiente para fazer um homem querer desaparecer. Deitar-se  eternamente em lágrimas numa cama de dor. Como este mundo me parece desinspirado e  cruel! Como me dói viver neste tártaro! Apanhado entre as engrenagens desta Kafkiana  máquina, gargantuesco animal mecânico que vorazmente consome seres esperançosos e vivos  para cuspir amálgamas de carne e osso de espíritos convalescentes. Bóreas inexorável  atropelando com os seus ventos gélidos as chamas das nossas almas. Criadora da geração  apática que somos, para quem a história guardará uma lacuna. Um triste vácuo de languidez.  “Aqui nada se tentou. Nada se fez”.

De forças minguadas, acabamos como nadas de olhos baços. Espelhos sem fundo de  ações, palavras, ideias e ideais apontados como adequados. Espíritos há muito esquecidos por  detrás da pantomima. Com a verdade tão profundamente enfiada no cu que na boca nos sabe  a merda. Já não me recordo de quando me destruí, mas sei que apenas no meu leito de morte  me encontrarei novamente entre os escombros. “Aí estás tu!” Direi de lágrimas nos olhos.  “Saudade cáustica que carreguei! Porque te escondeste durante esta dolorosa vida?” E  responder-me-á com o sorriso complacente de quem sempre na paz se encontrou. “Escondido não estive. Nunca o mundo te permitiu procurar-me. Hoje encontramo-nos, pois só na  infância e na morte é irrelevante quem és.”.

Alguns, ainda mais afundados no conformismo, creem piamente que as suas  identidades correspondem a estas máscaras, confundem o alívio dos desistentes com  felicidade e carregam-se de sorriso autêntico no rosto. Com a falsidade tão profundamente  enraizada que se torna genuinidade! A vitória do Sporting, as séries de Netflix, e as fotos de  pitas seminuas do Instagram a ricochetearem infinitamente nas paredes interiores dos seus  crânios. Como odeio os vossos risos de cremalheira exposta! Como me apetece esmagar entre  as mãos as laringes destes arlequins! Porque não sois vós moídos pela mesma angústia de  manancial infindável que eu?! Não vos é agonizante incorrer nesta marcha lúgubre tão  rápida, mas tão demasiado lenta, das conas das nossas mães para escola, da escola para o  trabalho, do trabalho para o ataúde, do ataúde para inexistência dos olvidados?! Desde  mancebo que tenho as pernas vacilantes, derreado com o peso desta existência absurda. E vós  dançais com a leveza duma folha de outono. Cegos a saltar agilmente por cima dos diáfanos  fios que as Moiras sadicamente estendem, em que eu, mesmo vendo-os à distância,  inevitavelmente tropeço e, com eles sitiando o meu pescoço, sufoco.

E os restantes, que conseguem a proeza de preservar algum espírito, que lutam contra  o destino que lhes é imposto. Têm a sua ínclita pujança recompensada com a compreensão de  que serão eternamente miseráveis! São os grandes poetas, pintores, músicos, os arautos dos  dolorosamente conscientes da sua existência. Que pela força com que se debatem contra a  corrente em que nós, estafados, nos deixamos levar, se veem condenados. Os melhores deles  são findados, acabam mortos ou insanos. Têm a alma suficientemente intacta para agir contra  cada novo torcer da faca do fado incrustada nos seus ventres. Têm a coragem para se rebelarem contra os grilhões da sua existência. São os Hemingways que pintam as paredes  com os miolos, os Chattertons que lambem deliciados os beiços, são os Van Goghs e os  Pollocks, incompreendidos na vida e gloriosos na morte. Mas são também os guerreiros  ignotos (e por isso talvez os mais valorosos) que lutam todo o caminho até à cova para serem  injustamente lembrados de modo passageiro como pústulas desprezíveis da sociedade.

Quantos Baudelaires, Saramagos, Lobos Antunes, perdemos para esta lei de Darwin  inversa? A sobrevivência dos que aceitam de asqueroso sorriso a vida que lhes é oferecida! A  sobrevivência dos mais fracos.

Anseio tornar-me um destes seres a que é permitida a entrada no panteão da realidade.  Conjurar essas forças titânicas para lutar inutilmente contra este mundo. Cometer um ou dois  erros banais, virar à esquerda em vez da direita, esquecer-me da carteira em casa, os cordões  rebentarem quando os for atar, esborrachar novamente o dedo mindinho do pé naquela mesa  de centro. É o que bastaria (ou bastará) para mim e muitos outros. Demasiado fracos para se  largarem na voragem que se desdobra a seus pés, mas fortes o suficiente para a ver. Ah, como  acolho esse momento de voluptuosa libertação de toda esta abjeta estrutura opressora! Vejo-o  como se lá estivesse, e acolho-o com a mesma compaixão com que ofereço, entre os meus  braços, guarita a um velho amigo.

Sentir a contração no frémito de incertas, mas decididas mãos que lhe chocalham as  metálicas entranhas, que o espremem e acordam duma inócua modorra para um fulgor fatal.  Ver saltar o cão em iras bestiais. Ouvir o estrondo vulcânico emanado da sua garganta. Saber  que num santiámen, solene e fumegante, entre o rubro sanguíneo daquilo que eu era, o  revólver readormecerá plácido no meu leito palatal.

Ou melhor ainda, ter coragem para enlouquecer! Ter a coragem para absorver as  entranhas nojentas da realidade deste mundo até me abaterem tal cão sarnento numa  eutanásia generosa!

A calçada do Giraldo a resplandecer a oiro incrustado por um sol zenital. O ar  esquizofrenicamente saturado da valsa Mascarada, executada por uma pantagruélica  orquestra, circunscrevendo com violas, violinos e violoncelos o palco em que danço  levianamente de pulsos hiantes, mananciais ininterruptos de teias de flumes negros que me  sulcam os antebraços erguidos aos céus no triste êxtase da liberdade que apenas os totalmente  desesperados podem sentir.

Flutuo em passos de bailarina alada, salto finalmente a tecelagem do destino em  piruetas que me deixam o pénis a esvoaçar-se à guisa de rabo amputado de lagartixa. Na  plateia, mães boquiabertas, rubras de pudor, cobrem os olhos aos filhos protestantes e  esbugalham os seus. Alguns homens, de cabeça baixa, renuem com o pesar compassivo de  quem sabe que poderia ter sido ele a sofrer o infortúnio. “Tão novo. É ceifada a vida aos que  menos merecem.” diz um “Não apostei que havia algo de errado no miúdo?!” retruca o outro  já ansioso por capitalizar da situação.

O trombone marca o ritmo que lentamente se finda. Vejo no maestro a mesma  antecipação que vi naquele imundo espelho antes de enterrar a lâmina de barbear no  antebraço. Irrompe o berro lancinante da ambulância, persona non grata. Temo que  prejudique a prestação da orquestra, mas com feroz concentração, o maestro, de cabelos e  casaca esvoaçante, no cerne duma tempestade musical divina, lança violentamente as mãos aos céus congregando todos os instrumentos num voluptuoso miasma sinfónico.

Faço vénia de histrião. Pernas traçadas, mão esquerda no peito ofegante, pelo negro  da axila exposto pelo braço ensanguentado que se ergue, bandeira branca de vitória, acima da cabeça. No preciso instante em que sinto a placagem dos paramédicos verde néon, que me  arrastam para a paviola, onde me enchem de narcóticos até perder o fulgor dos olhos.

Consigo-me ver perdido e agitado nas entranhas do sistema psiquiátrico, canário de  mina de carvão envolvido em fumos de monóxido de carbono na sua última luta desesperada em berros desafinados. Vejo o asilo como se existisse nos meus globos oculares, refletindo  nas pupilas as luzes incandescentes que ressaltam entre os aços inoxidáveis, as batas alvas  incólumes e os azulejos de casa de banho. Sinto as narinas inflamadas pelo cheiro acre de  tranquilizantes de elefante e as copiosas quantidades de amónia tentando futilmente mascarar  a pungência odorífera do mijo e merda. O cérebro e o fígado a partilharem o mesmo raio x de  amálgama disfuncional de carne carcomida. As correias de couro que após dias de constantes  safanões insurgentes são engolidas pela minha pele pastosa e ictérica, afundando-se num  visco acastanhado de pântano. Os contorcionismos em horripilantes gritos da minha face  encarquilhada, inundada de lágrimas de felicidade.

“Eu não sou louco, Senhor Doutor! Houve aqui algum engano!” berro do fundo  diafragmático dos meus pulmões, de picha esganada entre os dedos ofídios, contra-atacando  as seringadas da enfermeira chiante com esguichos espermáticos de doninha ameaçada.

Tropeço, entre orgasmos bélicos, no olhar dum psiquiatra que por um ínfimo instante  desnuda a sua alma que dardeja melancolicamente um murmúrio oprimido “Leva-me  contigo, que também eu estou cansada”.  Tropeço, entre orgasmos bélicos, no olhar dum psiquiatra que por um ínfimo instante  desnuda a sua alma que dardeja melancolicamente um murmúrio oprimido “Leva-me  contigo, que também eu estou cansada”.

Aparte

Quem berra estas palavras a tinta às três da manhã desta noite gélida não sou eu. É uma voz única que ultrapassa o físico. A congregação psíquica dos dolorosamente  conscientes da sua existência. A vós que roubei a voz, que estas linhas vos tragam o conforto  de quem descobre o seu sofrimento partilhado.

– Pedro Avillez

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